Arquivo do mês: fevereiro 2008

E o tiro saiu pela culatra

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A Federação Israelita do Rio de Janeiro (Fierj) entrou com uma ação judicial (2008.001.024498-5) contra a escola de samba Viradouro para impedir o uso de um carro alegórico que trataria do Holocausto com um Hitler sambando em cima de uma pilha de cadáveres. E a Fierj logrou resultados, ganhando uma injução impondo censura prévia no carro junto com uma multa de R$ 200 mil pelo carro mais R$ 50 mil por fantasiado de Hitler desfilando. Como era de se esperar, a blogosfera repercutiu a censura judicial e não o regime depravado do seu Adolf Hitler.Pois que o tiro saiu pela culatra! Ao invés de pedir para a Viradouro um espaço lá, sei lá como se chama, no prédio da escola de samba para botar uma barraquinha explicando o que seria o Holocausto ou então fazer uma ação educativa sobre o tema na mídia carioca, ou mesmo nacional, durante o carnaval, a Fierj tomou o atalho mais curto e banal: simplesmente apelou para censura, censura esta que não possui nenhum fundamento jurídico, a não ser nas iluminadas mentes da juíza Juliana Kalichsztein e do advogado da Fierj. Aliás, a juíza escreve algo particularmente interessante na liminar:

[A]pesar de pretender alertar a população sobre fatos importantes, o carnaval não deve ser utilizado como ferramenta de culto ao ódio, além da banalização dos eventos bárbaros e injustificados praticados contra as minorias

Decide-te, por favor! Ou o carro alegórico é um alerta “a população sobre fatos importantes” ou uma “ferramenta de culto ao ódio”. Considerando a lógica de Kalichsztein, este seria o primeiro carro alegórico com dupla personalidade; além disso, ela poderia estar acusando a escola de culto ao ódio sem nenhuma prova de tal fato, algo que nem mesmo os autores desta ação judicial acusam, como está no blog oficial da Fierj:

Reconhecemos as boas intenções do artista, que pretendia usar a arte como denúncia de fatos que marcaram de forma terrível a História, e que não havia nenhuma conotação racista é verdade,

Só uma consideração: existe alguma definição oficial de raça no Brasil para que se possa formalizar a existência de discriminação racial? A juíza, na sua célebre sentença (gramaticalmente falando), reclama sobre a “banalização dos eventos bárbaros”. Pois dando umas olhadas no Houaiss, descobri que banalização é o “ato ou efeito de banalizar(-se)”, banalizar é “tornar(-se) banal, comum; vulgarizar(-se), trivializar(-se)”, banal é algo “sem originalidade; comum, trivial, vulgar” e definido como sinônimo de comum. E pois que a primeira definição de comum é algo “que pertence a dois ou a mais de dois, à maioria ou a todos os seres ou coisas”. Ou seja, a juíza tem algo contra em tornar o Holocausto algo comum a várias pessoas que não fazem parte das comunidades atingidas pelo Holocausto. E considerando a penetração do carnaval e da televisão no Brasil, qualquer tema útil para ser discutido poderia muito bem ter como ponto de partida para a discussão um desfile de escola de samba no RJ.Outro item bizarro desta decisão judicial foi o timing em que ela foi interposta. Como esta no Informe FIERJ (sic), a Viradouro foi quem tomou a iniciativa de contatar a Fierj sobre sua disposição de colocar um carro alegórico sobre o desastre humano do Holocausto, onde a Fierj resolveu então ditar o que pode, e o que não pode, ser tema de desfile de escola de samba, na definição sua de bom gosto e mau gosto. Mas como disse Roberto DaMatta, temas polêmicos “fazem sentido, considerando-se as origens sacrilegiosas das festas [de carnaval]”. Voltando ao timing, qual a razão da Fierj entrar com um pedido de liminar a apenas 72h do desfile da Viradouro que não o propósito simples de causar polêmica? Pois eu respondo: para dificultar uma possível tentativa de cassar a liminar. E já que estamos no fórum… algumas pessoas comentaram sobre a possibilidade da juíza ser judia, algo que poderia colocar em dúvida a integridade da liminar. Lógico que uma ação judicial sem advogado não é nada, e o redator da ação, foi o sr. Ricardo Brajterman, um “expert” em liberdade de expressão.

E se tiro pela culatra não fosse o bastante, agora há o risco de fogo amigo. IstoÉ reporta que a família de Guimarães Rosa, notadamente suas filhas, querem impedir, até utilizando-se de censura judicial (Brajterman, olha um emprego novo aparecendo!), caso as cineastas Jacobsen e Vilela falem de Aracy de Carvalho, uma espécie de Aristides de Sousa Mendes de saia. E o blog da dita instituição que tem um determinado problema com a regra de siglas no português tem este post:

A jornalista paulista Silvia Perlov está à procura de sobreviventes do Holocausto que vivam hoje no Brasil, e tenham recebido/conseguido seus vistos de entrada graças à Dona Aracy Guimarães Rosa. Por gentileza, quem souber, peço que entre em contato comigo, indicando o sobrevivente e onde ele vive hoje (e uma maneira de contactá-lo). Desde já, agradeço a atenção e o apoio. Silvia

Se você for parente de alguma dessas pessoas já falecida e tiver documentos e algo para contar sobre a atuação de Dona Aracy Guimarães Rosa, entre em contato com a FIERJ para encaminharmos o material para nossa colega Sílvia. fierj@fiej.org.br

Pois que tu tomes cuidado, dona Perlov ou teu documentário terá o mesmo fim do que o carro da Viradouro.E hoje, sábado, leio Zero Hora; jornal que só leio por pura obrigação, uma vez que tem uma péssima linha editorial combinada com uma diagramação ainda pior. Túlio Milman, jornalista mediano ainda que à direita de Zero Hora (se bem que até o Hugo Chávez, em 115% das vezes, está à direita de ZH), escreve um artigo sobre o tema, quebrando um curioso silêncio editorial-opinativo de ZH sobre a peleia Viradouro vs. Fierj. Já na sua primeira sentença, Milman comete um erro ao afirmar que “[é] difícil imaginar o maior assassino de todos os tempos sambando”. Ai meu Jesus Cristo! Alguém precisa ensinar Milman a como utilizar um Google da vida. Será que Milman nunca ouviu falar em Stalin ou Mao Tse-Tung? Em suma, o artigo defende a liberdade de expressão como se vê nestes trechos:

(…)
A idéia é questionável do ponto de vista estético, mas não tem nada de desrespeitosa. (…)
A linguagem de um carnavalesco é outra, mas deve ser igualmente respeitada, porque também é arte.
(….)
Apesar disso, ao lembrar o assassinato de 6 milhões de judeus, a Viradouro estaria, do seu jeito, ajudando a impedir que este tipo de crime se repita. A receita preventiva é conhecida. Só existe uma vacina de eficácia comprovada: a memória.

Por isso, é equivocada a posição dos que trabalharam para impedir o carro alegórico de entrar na avenida. Aproveitando o nome do próprio enredo da Viradouro, “É de arrepiar”.
(…)
Não é o carro da Viradouro, mas o esquecimento que deve ser combatido.

Contudo, há um episódio de appeasement de Milman:

É verdade que faltou o mínimo de sensibilidade política à escola de samba, que se negou a atender um pedido da Federação Israelita do Rio de Janeiro. A simples colocação de uma faixa com os dizeres “Holocausto nunca mais” no carro alegórico teria resolvido o problema.

Estava demorando para eu mostrar aquele velhíssimo cacoete que o Grupo RBS tem contra a liberdade de expressão e autonomia individual, caso que eu senti na pele quando mandei um e-mail para o programa Polêmica na Gaúcha AM nesta semana quando se discutia a questão da distribuição de pílulas abortivas em Olinda. Minha mensagem, bastante educada e com uma pergunta sobre direito canônico para o padre da discussão, foi lida precedida de um quilométrico discurso de Lauro Quadros sobre censura, onde ele desculpava-se por estar lendo um e-mail condizente com os ditames da Santa Madre Igreja e da responsabilidade sexual individual (algo que deve estar em desacordo com as normas editoriais de RBS), e depois da leitura da minha mensagem, Quadros deixou Télia Negrão fazer comentários maliciosos sobre a minha vida sexual (algo que está de pleno acordo com as normas editoriais de RBS). De brinde, uma foto da “linda” mulher que resolveu, ao invés de rebater meus argumentos, fofocar sobre a minha vida sexual:
Pensando bem, maldade mim achar que ela teria argumentos científicos para contradizer o meu e-mail.E para fechar com chave de ouro, aqui vai um trecho de outro amante da liberdade de expressão, ou seja, candidato à presidência da Fierj:

Anos atrás o carnavalesco Joãozinho Trinta achou ruim que a Justiça o impediu de por na avenida uma imagem do Cristo Redentor envolto em lixo. Eu pensava que nunca mais o carnaval desceria tão baixo. Estava enganado… Deus queira que as autoridades não deixem esse carro desfilar, pouco me importa se terá palermas dizendo que é censura. (grifo meu)

Pois eu prefiro ser um palerma, seu Mayer.