Vigilantismo e razões econômicas

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Não ao vigilantismo!

O cerceamento à liberdade

A restrição às liberdades na internet; incluindo a tentativa de controle ao seu acesso, a censura ao que pode ser visto e publicado e  a violação de privacidade é um fato que  costuma ser associado a países com regimes ditatoriais, como Iraque, Arábia Saudita ou China.

Entretanto, em diversos países do mundo há, atualmente, ações governamentais e empresariais contra alguma possível liberdade  que a Internet facilita ou permite, inclusive em países onde a liberdade sempre foi um referencial.

No Brasil já foi aprovado pelo Senado o Projeto de Lei 84/99 cujo aspecto mais inadmissível  do ponto de vista da liberdade de escolha do cidadão, é o condicionamento do acesso à internet a um credenciamento  obrigatório, sujeitando quem contrariar essa determinação à um certo tipo de pena.

Para quem tem algum conhecimento sobre Informática é evidente que há modos de contornar a restrição ao acesso, o que torna o cadastro prévio, algo absurdo e burocrático, além de inócuo, já que quem pratica ilícitos na rede vai continuar praticando, conectando-se à rede por meio de empresas estrangeiras e utilizando telefones clonados. E, ainda, temos que considerar que a todo momento surgem novos recursos de software e de hardware que possibilitam o anonimato.

Intenções reais

Então, por que alguém com um pequeno conhecimento da área, pode defender esse tipo de  procedimento?

Há uma grande gama de cibercrimes: manipulação de caixas eletrônicos, pirataria de programas ou demais obras, plágios, com ofensa a direitos autorais, passando por abusos nos sistemas de telecomunicação, como envio de e-mails com conteúdo ameaçador, publicação de imagens de conteúdo ilegal, ofensivas à moral ou de pedofilia.

Assim, uma argumentação que costuma estar presente nesse tipo de atitude é o combate ao terrorismo, à pirataria, à pedofilia, e para proteger direitos autorais de seus legais proprietários.

No entanto, aparentemente o projeto não tem essas intenções, especialmente por que a lei anti-pedofilia, grandemente responsável pela sua aprovação no Senado,  já foi aprovada no início da semana.

Quais seriam, então, as intenções do projeto?

É importante notar que a ordem de fatores citada abaixo segue uma lógica meramente organizacional e não de importância.

  • 1. Atender o ACTA

Medidas internacionais que a Associação da Indústria Discográfica Norte-americana (RIAA), a Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI), a Motion Picture Association of America (MPAA), a entidade que defende os interesses dos maiores estúdios produtores de filmes dos EUA foram propostas recentemente ao G8 (grupo do países mais desenvolvidos e Rússia) e que se traduziram em um acordo, o ACTA – “Anti-Counterfeiting Trade Agreement” – que pode ser traduzido como Acordo de Comércio Anti-Pirataria.

Curioso é notar que não é um tratado e, sim, um acordo. Mas talvez seja fácil entender o porquê. Desse modo sua tramitação não precisa ocorrer no congresso dos EUA. E, assim, a opinião da sociedade civil pode não ser considerada.

Esse acordo, se for efetivamente cumprido, promoverá a existência de um Estado policial digital que deverá obrigar todos os países a tomar severas medidas que tentarão restringir a utilização de formatos de arquivos, de equipamentos, ou de procedimentos que são normalmente efetuados por um enorme número de pessoas, em diversos países, restringindo a liberdade de seus cidadãos. Tais medidas podem incluir:

  1. Revistas para procura de aparelhos eletrônicos de comunicação ou armazenamento de dados como iPods, laptops, netbooks, pendrives, telefones celulares, além de CDs e DVDs. Os equipamentos  poderão ser confiscados e/ou destruídos por guardas de alfândegas na passagem por fronteiras internacionais, sem que tenham sequer de obter uma queixa de um detentor de direitos autorais. Se encontrado algum indício de violação desses direitos o portador será multado e o aparelho poderá ser confiscado ou destruído.
  2. Provedores de serviços de internet deverão cadastrar e manter por alguns anos, o registro dos usuários da rede e suas atividades, fornecer informações desses clientes  às autoridades, inclusive sem o devido mandato, ou aval da justiça,
  3. Criação de uma agência com o objetivo de fiscalizar e regulamentar as medidas a serem tomadas.

É importante notar que ainda há outras exigências que incluem até a permissão para que autoridades judiciais possam dar continuidade a processos sem identificar os processados.

  • 2. Atender aos Bancos

Os bancos são, possivelmente, o setor mais lesado por crimes cibernéticos, sobretudo por oferecerem serviços que não podem prestar com qualidade, por falta de segurança.

Apesar de terem auferido enormes lucros nos últimos anos, os bancos apresentam uma conta de prejuízos anuais que já ultrapassou RS 1 bilhão devida a crimes virtuais. E as tentativas de fraudes pela rede crescem a cada ano.

Aparentemente os bancos não mais querem assumir o custo da segurança do sistema financeiro numa internet que consiste basicamente de computadores com sistema operacional Windows, que possibilita muitos bugs e invasões e que está repleto de usuários ingênuos e/ou despreparados.

Assim, o Projeto de Lei 84/99 visa transferir tais custos de proteção para o Estado, em que Polícia Federal teria bases para um policiamento preventivo altamente sistematizado pela vigilância da Rede.

  • 3. Atender ao Fisco

Produtos falsos não pagam impostos, então, aparentemente a pirataria afeta bastante o Fisco brasileiro. Os segmentos mais severamente afetados são: distribuidoras de combustíveis, fabricantes legais de produtos de limpeza doméstica, produtores de software, indústria farmacêutica, manufatura de brinquedos, confecções e setor de cigarros.

Portanto há uma enorme sonegação de impostos. Calcula-se que somente com a falsificação nas áreas de roupas, tênis e brinquedos, o Fisco deixa de arrecadar mais de RS 10 bilhões anuais.

  • 4. Atender às distribuidoras de programas computacionais, livros, música e filmes

Os artigos 285-A e 285-B objetivam criminalizar o acesso a sistemas informatizados e dispositivos de comunicação sem a autorização do titular da rede, já que a pirataria digital lesa principalmente os interesses das empresas distribuidoras (tais como gravadoras e empresas cinematográficas) muito mais que os autores das obras.

Assim não se criminalizam os atos de pirataria (cópia em série para posterior venda). O projeto quer impedir a cópia única, e o seu compartilhamento, mesmo que não haja objetivos comerciais. Ou seja, até um consumidor que comprou  um produto, não poderá fazer uma cópia para backup ou para uso pessoal.  Por exemplo, não se poderia copiar um CD comprado para um tocador de música.

Interessante é notar que mesmo quando se trata de cópia de programas, músicas e filmes há enorme desconhecimento das diferentes realidades.

Basta considerar o próprio sistema operacional Windows. Será que há algum sistema mais copiado?  E, no entanto, os lucros da Microsoft são enormes. Aparentemente, a própria pirataria  age como a melhor propaganda nesse caso.

Obviamente são anunciados números alarmantes sobre o quanto o Brasil perde em impostos e empregos devido à alta proporção de programas piratas usados. Mas, os valores consideram uma flagrante inverdade: que cada indivíduo que copia um programa, compraria e instalaria aquele produto se não efetuasse a cópia. Nem sequer consideram quantas pessoas instalariam programas gratuitos e/ou livres, ou sequer comprariam computadores, se efetivamente precisassem avaliar os custos totais.

Um exemplo interessante envolvendo cópia de filmes ocorreu no Brasil. O Filme “Tropa de Elite” fez um enorme sucesso em 2007. Ao mesmo tempo, foi o filme brasileiro mais compartilhado em redes P2P.

Ainda há que se considerar que atualmente percebe-se nos EUA uma evolução positiva do faturamento dos estúdios de cinema, apesar da cópia de arquivos torrent ser cada vez maior.

Portanto, aparentemente, a pessoa que copia um arquivo não é necessariamente alguém que compraria aquele filme, livro ou música no varejo.

Algumas conseqüências da aprovação do Projeto

Na prática, parece que alguns dos objetivos são

  • Vigiar todas as atividades de todas as pessoas no uso da Internet, pelos provedores,
  • Interferir no uso justo de direitos autorais sobre obras culturais. A cópia única, sem objetivo comercial, que garante a educação pessoal seria inexequível, mesmo sendo permitida em outros países como os EUA,
  • Criminalizar a comunicação ponto a ponto que possibilita o compartilhamento de arquivos de grande tamanho, notadamente as obras culturais como os sistemas operacionais de computadores, livros, discos e filmes e
  • Minar o acesso aos medicamentos genéricos, de baixo custo.

Assim, após uma rápida análise é alarmante notar que o Projeto de Lei 84/99 não impede a ação de ciberterroristas, ou de pedófilos ou de ladrões, mas apenas

  • possibilita a violação de direitos civis básicos, instalando o vigilantismo na Internet,
  • eleva o custo Brasil de comunicação,
  • reduz as possibilidades da inclusão digital e
  • transfere para a sociedade os custos de segurança que devem ser custeados pelos bancos

Além disso pode afetar a pesquisa científica em todas as áreas, pois é baseada em referências bibliográficas.

Então, pode-se perguntar: Por que a sociedade brasileira deve aceitar tais restrições à sua liberdade e arcar com tantas despesas?

Aqui cabe lembrar que o projeto ainda não está aprovado, e que ainda se pode assinar a Petição pelo veto ao projeto sobre cibercrimes. Já há mais de 121.000 assinaturas.

Referências Bibliográficas

Almeida Camargo, S. C. A. – Cibercrime ameaça empresas públicas e privadas Publicado em 31/10/2006. Visualizado em 15/11/2008.
Atheniense, A. – Controle da internet não coibirá crime, mas privacidade Publicado em 16/09/2008. Acessado em 15/11/2008
Caribé, J. C. – A histeria vigilantista e novo vilão, o Twitter Publicado em 28/10/2008. Acessado em 15/11/2008.
Caribé, J. C. – Chamada para a blogagem politica II – Não ao vigilantismo Publicado em 12/11/2008. Acessado em 15/11/2008.
Conti, F. – Projeto de Lei 84/99 – Serve a quem? Publicado em 20/07/2008
Conti, F. – O silêncio sobre o ACTA Publicado em 22/09/2008
Foina, A. Pingue Pongue na Lei do Big Brother: Vigilância e Censura no PLC 89/2003 do Senador Azeredo Publicado em 20/07/2008. Visualizado em 15/11/2008
Pádua, D. – Audiência Pública do Projeto de Lei de Cibercrimes: Um relato rápido Acessado em 15/11/2008
Amadeu da Silveira, S. A. – Veja o que aconteceria com quem baixou o filme Tropa de Elite se o projeto do Azeredo fosse lei Publicado em 18/07/2008. Visualizado em 15/11/2008
Tavares, A. – Geeks politizados: o futuro da internet no Brasil Publicado em 16/09/2008. Acessado em 15/11/2008

Fátima Conti – fconti@uol.com.br – 15 de novembro de 2008

Sobre Fa Conti

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  4. Oi
    Efetuei pequenas correções no texto, objetivando corrigir meus erros e aprimorar o entendimento. Antecipadamente peço desculpas se causar algum tipo de problema para alguém.
    Em 17/11/2008, 03,37 em Belém, PA. Fátima Conti

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  14. A plangiesly rational answer. Good to hear from you.

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